24 de agosto de 2006

Entrevista de Luís Serguilha

Meu nome é Maria Carolina de Ré, sou jornalista, trabalho na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (Brasil) em uma revista chamada Em Cartaz, que traz todas as informações sobre a programação cultural da cidade. Gostaria de fazer uma pequena entrevista com você a respeito do evento Violência e Literatura, promovido pela Biblioteca Mário de Andrade, que contará com a sua presença. Devido à distância e a dificuldade de entrar em contato por telefone, segue abaixo algumas perguntas:

Nos últimos anos, houve um interesse crescente dos leitores brasileiros em conhecer o trabalho de autores portugueses contemporâneos. Tal interesse é evidenciado pela presença destes em debates e grandes encontros como a Flip, que já convidou e Gonçalo M. Tavares, Inês Pedrosa, Patrícia Reis, José Luís Peixoto e Francisco José Viegas. Na sua opinião, qual a importância da troca de ideias entre autores (de Portugal ou não) que também escrevem em português e o público brasileiro?


É urgente destruir verdadeiramente as barreiras culturais entre Portugal e o Brasil, a literatura actual do Brasil é substancialmente desconhecida em Portugal e a literatura actual portuguesa é apresentada no Brasil sobretudo através dos autores mais mediáticos. Há que realçar que muitos poetas portugueses ainda vivem “exilados de Florença” ...É urgente potencializar a unidade lusófona e combater a involução. O português é uma língua com “disseminação planetária”. Precisamos de fortalecer e diversificar a comunicação e a partilha . Os escritores precisam de se ligar ao outro num processo de reaprendizagens mútuas. Este mundo relacional faz parte do renascimento da conversação onde todos nós interrogaremos os mistérios da Natureza, a impulsão do universo e a condição humana.


Quais são as suas expectativas em relação a este encontro promovido pela Biblioteca Mário de Andrade?


Espero que se eleve a energia da unidade dinâmica, a liberdade da substância transmutadora, cosmogónica onde os poetas-escritores desdobram os seus corpos e as suas vozes até à linfa unificadora das profundezas da vida, da palavra. É neste luzeiro encantatório, do real absoluto que conversaremos sobre os cânticos regeneradores do universo lusófono, o ser-no-mundo e o verdadeiro habitat da nossa existência.

Você considera este tipo de debate enriquecedor? Se sim de que maneira?


Ficamos mais fecundos quando o diálogo, a variabilidade perceptiva-transmigratória se transformam em actos-criadores. Aqui as palavras devoram a energia plurissifignicativa e fundamentam a ambivalência da realidade humana , assim a renovação imagética , os fluxos imprevisíveis e indetermináveis alcançam a integridade e a incorruptibilidade do ser. Ficamos mais ricos quando o dialogismo se abre à intimidade pura, à heterogenidade, ao desassombro selvagem e à metamorfose poética para regressar à génese, ao mistério, à vida absoluta. É nesta gestação de processos interrogativos que reactualizamos a força da linguagem. É urgente combater a vulgaridade, o esvaziamento, a banalidade com o corpo resistente da essência da palavra que tenta buscar o infinito e desvendar a esfinge que persegue a humanidade.

É urgente o diálogo, a partilha neste mundo de barbáries..., o confronto e a sintonização com o outro enriquece-nos ...literariamente, humanamente.

Para você o que é violência? Como esta temática se apresenta em sua escrita?


Nascer , já é uma violência. Sair do paraíso-amniótico obriga-nos a participar na eclosão do Grito universal, por isso o poeta além de tentar regressar à origem primordial procura obstinadamente o magnetismo do silêncio, as respostas do deserto, a pulsação da visão-outra.

A violência começa também na nossa constituição pelo facto de estarmos permanentemente em luta dentro da nossa interioridade: na nossa interioridade existem encruzilhadas, armadilhas, constelações, correspondências em confrontação e caminhos disseminados, precisamos de reorganizá-los e emancipá-los com uma luz muito própria até à nossa libertação, aliada à autenticidade secreta.

Existem outras violências circunscritas pela esfera da malignidade e da catástrofe humana: ..., o desaparecimento dos instintos vitais das fronteiras entre a luminosidade e a barbárie, a efemeridade do trama da linguagem, o avanço da crueldade ensurdecedora dos fenómenos absolutistas, despóticos em tantas zonas do Globo, a expansão das escabrosidades, das desigualdades e das desproporções, as rupturas da reciprocidade e da mutualidade nas sociedades contemporâneas.

Realmente a violência tornou-se um espectro crónico, transformou-se numa arena-víbora tresloucada em que a egolatria e o mundo imperialista-monopolista-financeiro-político-militar se defrontam com o análogo, o alienígena , o estrangeiro e com a liberdade , a autodeterminação , a soberania e a ecologia dos povos.

A representatividade da violência ergue-se quando surgem as acareações das celebridades dos mais fortes e a centralização dos poderes com as sobrevivências , as resistências e os sonhos das populações mais fragilizadas...

Os fenómenos autoritários, os acossamentos sangrentos, os aventureirismos-imperialismos bélicos e a monstruosidade do poder absoluto fazem parte da nossa História. Aliás, a História é uma guerra perpétua e a execrável exploração do homem pelo homem pertence à efeméride de todos os povos.

Impera a globalização da miséria , da injustiça e da ideologia do “salve-se quem puder”; esta mundialização marginaliza os pobres e os transgressores da homogeneização cultural .

O bucho nauseabundo da produção-lucro, do mercado, do neo-narcisismo compulsivo mercantilizaram a vida humana e a intelectualidade: estamos perante o barbarismo da compra-e-evenda, onde a produção da miséria é galopante aliada ao colapso do contracto social.

O mal faz parte do homem..,....será que o mal é genético?...será que o homem tem que se transformar “biologicamente e socialmente”?. Os países que atingiram “ a dita civilização” foram protagonistas das maiores atrocidades humanas e dos tresloucados genocídio. Nestes mesmos países navegam , navegaram e germinaram as criações mais sublimes da história da literatura e da arte...

Na correnteza criativa-poética existe uma outra violência: o poeta e o poema irrompem do labirinto, da vertigem , do abismo, do desejo guerreiro, da transmigração do consciente-inconsciente , da metamorfose contínua, do não-lugar, do exílio, da vascularidade dos espelhos da vida, da tragédia e da memória, tentando unir a materialidade e a espiritualidade, a exterioridade e a interioridade, o firmamento e o subsolo, o astro ao astro. Esta violência resplandecente abre o poeta ao mundo, à luz e à obscuridade, à permutação fantasmagórica, à libertação selvática, à utopia, à verdadeira vida, à fertilidade primitiva-original da terra-mãe, num ritual cosmogónico, antropofágico, xamânico, petrológico, sacral, mitológico, rítmico.

Esta reconquista é feita da violenta energia do desassossego, dos icebergues da condição humana, da sincronização do tempo e do espaço, da coexistência da luminosidade e da escuridão. Todas estas travessias interseccionam a realidade-outra, as imprevisíveis transformações, as sensações do ilimitado e do vazio... até à nossa incompletude.


Você tem contato, foi ou é influenciado pelo trabalho de algum dos autores convidados? A saber: Ondjaki (Angola); Paulina Chiziane, Nelson Saúte (Moçambique); Ernesto de Melo e Castro, Cristina Norton, Jorge Melícias (Portugal); Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Torres, Márcia Denser, Fernando Bonassi e Ana Paula Maia (Brasil).


Há sempre um caminho “relacional e transpessoal” nas nossas vidas...

Existe uma conversação contínua com o Poeta E.M. de Melo e Castro e com o Poeta Jorge Melícias

O E.M. de Melo e Castro além de ser uma das maiores referências da Literatura Portuguesa, representa para mim a violenta sedução da vertigem, da transgressão, das rupturas, da interrogação absoluta e antiquíssima, da intensa inovação, da sabedoria, das cosmovisões, vascularizando o limite dos limites, recriando as navegações cósmicas, instaurando a substância latente do mundo e as aberturas da permanente indefinição e do inexplicável.

O E.M. De Melo e Castro transmite-nos singularmente a materialidade flamífera, a geografia celeste, o subsolo terrestre, as circunvoluções alucinantes, a memória do abismo, a projecção-mundo-fractal, através do fluxo relampagueante das palavras, das imagens, dos sons , da imersão da sua fortíssima heterogeneidade criativa, do seu espírito eléctrico, da sua violência pulsional que está para lá do que pode ser compreendido e sentido.

O Poeta Jorge Melícias é um excelente tradutor-editor . É um poeta piroclástico que me transmite os espelhos devoradores do corpo-palavra, escreve com a máquina cinematográfica manual do cineasta Dinamarquês Lars von Trier e com o grito obscuro, germinador da vida.

O Poeta Jorge Melícias transmigra nas sensações antropofágicas, nas altercações, nas cauterizações do desejo , na violência da força que vem da terra e do interior do corpo, revelando o informulável, as figurações inesperadas e a intensidade indomável da palavra, recriando a ambivalência da existência humana. É um poeta da ebulição petrológica. A sua metamorfose poética eclode muitas vezes nas fabulosas coreografias da Pina Bausch.

Como acontece seu processo de criação?


É INEXPLICÁVEL ...,...o alvoroço criativo é ilimitado...possivelmente é indizível,...contudo


...sei apenas que tento transformar a vida, o subsolo da vida, com as armadilhas da luz, as subducções da lava do corpo e da energia da palavra. Tento enfrentar o infinito, a indeterminação, o não-sentido com a respiração do desejo e da transgressão imaginária. O confronto com o nada, com a ausência, com o lugar-nenhum, com o insondável eleva dentro de nós a incerteza, a incógnita, os andamentos utópicos, a reactualização incandescente da metáfora e a reinauguração da metamorfose até ao indefinível e à impossibilidade que alimenta sempre o alvoroço e a nossa orfandade . O poeta mergulha no inexprimível, no indizível, no desconhecido, na gestação obscura para procurar a sua origem , o seu silêncio sempre num processo regenerador , antropofágico, linfático, mitológico. O poema absorve o desabrochamento, as pulsões e o espirito do poeta como uma reconstrução mutua repleta de energias e ritmos transmutadores, libertadores , cosmogónicos .

Na página em branco procuro a substância oculta do mundo, o mistério da Natureza, a intemporalidade, os rios alquímicos e a autonomia selvática. As palavras alastram, imergem como “cavalos sonâmbulos” na ebulição do labirinto. O sublime da palavra explode a sua origem no impenetrável e no desconhecido...,...

Encontro-me com o poema na eclosão do silêncio, na armadilha do caos, na libertação do enigma silencioso, na antecipação da vida, no desassossego, na perscrutação do abismo, no desejo de unificar os elementos da Natureza...,...

Busco o poema no dédalo e nas multiplicidades do corpo indomável, nos cânticos xamânicos, na consciência caótica, na espiritualidade, na sacralidade, na energia do informulado, na integridade do ser, nos devoradores do fogo, na fertilidade ardente da mãe-terra, nas fusões do nada, nas interrogações do deserto, na violenta nidação da ausência e do exílio...,....

Neste regresso à ascendência nativa o Poema esculpe, reconstrói o Poeta entre a visão-outra , o inexplicável , a voz das vozes, a impossibilidade e o silêncio da unidade original...,...

Na esfinge que me persegue procuro o lugar verdadeiro ...a vida verdadeira que está ausente relembrando Rimbaud...


Você tem contato com a literatura produzida no Brasil hoje? Se sim, quem são os escritores brasileiros que você lê?


Irei apresentar o meu livro: ROBERTO PIVA E FRANSCISCO DOS SANTOS na CASA DAS ROSAS-ESPAÇO HAROLDO CAMPOS...,...neste livro dialogo com mais de 40 autores BRASILEIROS da actualidade... Poetas Brasileiros e do Mundo da Metamorfose que catapultam os rituais dramáticos-guerreiros, o extravasamento das vozes-linguagens, as referencialidades da aderência libertária-perturbadora e inovadora, a secreta instantaneidade expansiva.

Poetas-Brasileiros propulsores de sonoridades/ferocidades ; de disposições perceptivas; de autodiferenciações dramáticas, de radiações luminosas pré-babélicas.

São Poetas transfiguradores dos abalos, das auscultações do sagrado cosmificador, das intersecções devoradoras do fogo-primitivo, das excentricidades expansíveis, das proximidades ao sublime fundador do Universo, das constelações dos auto-exílios e das vocalidades; das afinidades das energias-corporais-cénicas, dos desdobramentos do imperceptível , do movimento das unidades, das exposições cinematográficas-maritimas-terrestres-astrais, das sequencialidades dos gritos estranhos-sensoriais...,.... Dialogo com Poetas da espiritualização do mundo, da erotização/antropoformização...,.... Poetas do engenho resgatador dos abismos, das visões mágicas e do conhecimento afectivo ...,....ao navegarmos, mergulharmos, olharmos, absorvermos, recuperarmos, percepcionarmos, lermos estes poetas começamos a respirar debaixo d’agua...


Um dos temas que tem gerado grande polêmica entre críticos dos meios de comunicação no Brasil é a espetacularização da violência. Cada vez mais, imagens que exploram acontecimentos violentos têm sido vinculadas na Internet, no cinema, na televisão e nos jornais. Tal excesso contribui para a banalização da violência. Você acha que a literatura tem contribuído para o desenvolvimento deste quadro? Existe um debate entre os escritores a este respeito? Como estas questões reverberam na produção cultural de Portugal?


QUANDO a literatura faz alianças compulsivas com industrialização cultural e com o mercadejo, contribui para o amortecimento e para a opressão, bloqueando a liberdade e a integridade do ser humano. Neste quadro as palavras são inexoravelmente subjugadas e escravizadas . As pessoas transformaram-se em peças das batalhas do feudalismo tecnológico-propagandístico.

As cotações das bolsas cambiam a ideia da terra nativa . Os Bancos e as Companhias de Seguros substituíram as correntezas culturais das nações . A segregação social está a dilapidar as possibilidades; a atiçar a catástrofe das desigualdades e a fomentar as sociedades totalitárias. O consumo corrosivo e virulento das novas oligarquias e das novas cleptocracias fomenta a “ideologia da passividade e da mesquinhez calculista”. É a fanática destruição das diversidades culturais e paisagísticas.

Penso que a literatura-literatura está a ser expulsa da cultura dos povos empobrecendo-os cada vez mais. A linguagem está frágil. É urgente e necessário criar uma cultura de resistência, de diálogos, de reflexões onde se ressaltem as fecundações do encantamento, da reconquista, da entidade libertadora e do mistério indecomponível. Muitos homens e muitas mulheres infelizmente e miseravelmente acorrentam-se às grandes editoras, aos prémios literários e às promoções comercias, alimentando o sensacionalismo e o culto da personalidade.

Alguns meios da comunicação social fomentam o voyeurismo cavernoso e miserabilista, estimulando os instintos vampiristas da barbárie e da crueldade. Este parasitismo sensacionalista provoca o medo e a angústia nas pessoas. A depressão e a tragédia vivem num terreno comum.

Como já disse anteriormente continuamos a cometer os mesmos erros, a não aprender nada com a história, nem com o espelho da vida e do palco de Shakespeare: a tragédia e a crueldade açambarcaram o coração do mundo.



LUIS SERGUILHA PORTUGAL

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"O mal dos seres humanos, é que preferem ser arruinados pelos elogios, a ser salvo pelas críticas."